POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Quem te disse que não tem miséria em Berlim?




        Sem-teto na estação de metrô. Um dos lugares mais comuns para buscar algumas moedas

Há um número crescente de sem-tetos em Berlim; estima-se chegar a quarenta mil a população que perambula pelas ruas da capital alemã e que dorme em diferentes lugares da cidade: pontes, viadutos, parques, paradas de ônibus, estações e outros lugares abandonados. 



                   Sem-teto levando a "casa" pelas ruas de Berlim.


Durante o dia, quando conseguem se movimentar, deambulam em busca do que seja. Mendigam ou vendem o “Jornal dos Sem-Teto”, embarcam nos metrôs tentando obter algumas moedas ou ficam parados em qualquer canto de rua pedindo por ajuda ativa ou silenciosamente. Comida, Schnapps, cigarro, um olhar de atenção ou uma conversa que seja fazem parte do rol de súplicas ou pedidos. Uns querem isso, outros aquilo. Não se pode julgar nem dizer o que é bom ou ruim, certo ou errado. Isso de julgamento, de avaliação deve ficar somente com os que se envolvem e se dedicam a vê-los como pessoas carentes/needy/Bedürftige e, efetivamente, tentam ajuda-los. Julgar, avaliar não é tarefa daqueles que lhes jogam uma moeda e continuam alheios ao que se passa com eles. Nós, apenas passantes indiferentes, desatentos ou "piedosos" temos pouco a dizer muito menos a cobrar. Como já bem disse minha amiga Adelaide ao se referir aos “nossos" moradores de rua no Brasil, “isso se trata de um longo e penoso caminho que afina as histórias de vida do Povo Sem Direitos, expulsos de casa, jogados à errância e à vida nômade na cidade do capital. Sem moradia, sem trabalho, mutilados da vida, descartados, engrossam os espantosos números da gente que mora na rua, na desgraçada arte de morrer um pouco a cada dia. Abandonados, esquecidos nas coxias das cidades, morrem aos poucos sem saber por que, mas sabem que estão morrendo aos pedaços a cada dia. Doenças? dói tudo…”  



         Cena de um sem-teto perambulando pelas ruas do centro de Berlim.(1)


As nações e as cidades, quando traduzidas, sofrem dos mesmos males: “Enquanto o coração bater na Bolsa, não tem jeito”, dizia meu amigo austríaco Roman, que ora vive e trabalha em Berlim. Acho que ele se referia à acumulação de riquezas como único princípio norteador das pessoas. Nessa cidade, que é a capital da Alemanha e considerada uma das mais vibrantes da Europa o drama dos que vivem na rua se assemelha, apesar da dimensão ser outra, ao dos demais sem-teto mundo afora. Do Jornal taz.de extraio as queixas de um deles: "Manni P. 'tem cérebro', como ele fala sobre si mesmo, mas de alguma forma sempre escorregou pelas brechas da vida. Finalmente precisa de alguém que o olhe, que o leve a sério. Tem 30 anos agora, e o trem está partindo e lhe deixando para trás, diz ele, enquanto traga o cigarro por um longo tempo. Parece bem cuidado e sua dentadura está completa; usa um blusão preto, porta cabelo curto, limpo e penteado. Sente-se exausto, tem pequenas olheiras, mas ainda sorri muito. Nesta noite de início de verão, está sentado em um pequeno muro de pedra não muito longe da antiga escola Gerhart Hauptmann, com uma porção do que seria seu jantar a seu lado. Sua história não é única. Vários milhares de pessoas vivem em Berlim sem endereço certo… "Não estou com vontade de dormir na rua de novo esta noite", diz Manni P., enquanto se apoia com uma mão na pequena parede. Continua: ”Eu não sei o que fazer. Tenho pensamentos doentios. Quero me acalmar. Quero poder me desligar.” Para os sem-teto, a vida é uma ameaça constante; Confiança e apoio são desconhecidos para eles: "Quem se dirige a mim?", se pergunta de dentro do seu saco de dormir. Dormir com segurança é impossível no Görlitzer Park”.

Às vezes uma atitude amistosa, algo que raramente acontece, aquece nossos corações. Um dia, no metrô testemunho uma cena muito rara e original para a metrópole fria e indiferente. Uma jovem senhora muito bem vestida interagia com seu filhinho no carrinho, empurrando-o de lado a outro do vagão, entretendo-o durante a viagem. Parou por acaso ao lado de um certo senhor com seu carro de supermercado cheio de sacolas cheias de não sei o que. Muito comum os moradores de rua carregarem seus pertences nesses carros, “sua casa” ambulante. Fiquei observando a cena da jovem mulher com seu menino sorridente passando casualmente por perto desse senhor e quando dele se aproximava a criança lhe acenava com uma das mãos, sorridente, ao que o senhor prontamente procurou no meio dos seus muitos sacos, aquele que tinha um pão. Apressou-se a passar para o menino que lhe havia estendido a mão, em cortesia espontânea. A mãe acolheu a oferta e não somente, abriu o saco e deu o pão que a criança a seguir e com gosto levou à boca. Continuaram interagindo, conversando, conversa que senti como espontânea e verdadeira, até chegar sua parada. Trago a cena aqui porque se trata de uma raridade, pois geralmente o olhar no metrô é de distância e indiferença em qualquer circunstância ou, no caso dos sem-teto, com uma piedade incômoda, quando não mesmo de pura agressividade, de desconforto ou rejeição. Desta feita meu coração foi aquecido pela atitude tão humanizada dessa bela e jovem senhora, que muito bem vestida e com seu filho não menos belo me fizeram ganhar o dia.


                                Cena de um sem-teto no Metrô Neukölln. 



Para os que perambulam pelas ruas de Berlim acesso a roupas é o de menos. A história é outra. Há muitas ações para distribuição de roupas doadas e não é difícil ver numa cerca ou no muro de algum parque algumas, penduradas em cabides, para serem levadas livremente, às vezes com um aviso: "Podem levar o que necessitar mas por favor deixem o cabide na cerca”. Em muitos containers espalhados pela cidade também é possível colocar roupas para doação com diferentes fins, inclusive para essas almas peregrinas, esquecidas, transparentes (termo que tomo emprestado do presidente Lula, ao falar no G20 no Rio de Janeiro sobre a “transparência” dos pobres, de sua invisibilidade na sociedade), que apenas sobrevivem nas ruas, agora já começando a ficar bem frias. Há diferenças conceituais e reais entre moradores de rua; no Brasil os conhecemos principalmente das grandes cidades mas que cada vez mais passam a fazer parte da paisagem urbana de outras menores. Os sem-teto seriam aqueles que não se encontram nesse estágio e em vez disso ainda podem encontrar um lugar de estada temporária (no Brasil, em abrigos ou ocupações, aqui em apartamentos cedidos pela prefeitura, governo do estado ou federal, lugares subsidiados ou em outros tipos de abrigo). Essa parte da população, tampouco é pequena aqui em Berlim, chegando, como já dito, a 40 mil pessoas.(2) Na Alemanha, Berlim está em terceiro lugar em número de pessoas vivendo nas ruas, quando se leva em conta a relação entre o número desses moradores e o da população em geral, ficando atrás apenas de Baden-Württemberg e Renânia do Norte-Vestfália (estado onde fica Colônia). Acredita-se que as áreas metropolitanas sejam mais atraentes também para essa população que procura moradia. Nas grandes cidades há, de fato, mais lugares para ficar e outros serviços sociais e assistenciais a que se recorrer. Não estamos falando de refugiados oriundos de outros países. Estes só entram na contagem se o procedimento de pedido de asilo tiver sido concluído e bem-sucedido. Há uma leva de refugiados sem teto e sem papéis fora dessa conta. 

Dependendo do bairro em que se ande na cidade se vê tipos diferentes de moradores de rua. Os que vivem em grupos e já resumem sua vida cotidiana a vícios diversos, que impedem ou dificultam uma “reinserção” social. Outros que tentam obter algum dinheiro para comida e ainda outros que fogem ao estereótipo de pessoas descuidadas, muitas vezes mesmo bem vestidos senhores e senhoras que se submetem a mendigar porque a vida lhes deve ter roubado tudo o que ainda lhes restava e as chances de recuperar o perdido são mínimas ou inexistentes.  É evidente a dificuldade de quem saiu do sistema econômico, deixou de ser produtivo, necessário, passando a ver se expirar o tempo e perder as chances de reinserção social e laboral, o que só piora com o passar dos anos. A pobreza aumenta.



                Uma pessoa sem-teto "vivendo" no Volkspark Wilmersdorf -- Berlim.


Para alguns, porém, Berlim é considerada a capital dos sem-teto, pois se vê poucas metrópoles da Alemanha com tanta gente vivendo nas ruas. Susanne Gerull, professora da Universidade Alice Salomon, juntamente com representantes da Associação para o Trabalho Sócio-Cultural (VskA), apresentou na sexta-feira a última fase de um projeto inédito em todo o país: Voluntários contam os sem-teto e combatem esse desconhecimento ou conhecimento apenas parcial sobre eles. "Quase exatamente em um mês, na noite de 22 para 23 de junho, cerca de 2.000 berlinenses devem estar se movimentando pela cidade para registrar as pessoas dormindo debaixo de pontes, em entradas de casas ou em estacionamentos de vários andares. Este chamado 'tempo de solidariedade' é apoiado pela administração social de Berlim e se baseia em modelos já vigentes em outras metrópoles. Em Boston, por exemplo, o 'Censo dos Sem-teto' vem pesquisando o número de moradores de rua há 40 anos; em Nova York existe um programa semelhante desde 2005, em Paris os sem-teto foram contados pela quinta vez no 'Nuit de la Solidarité' este ano [2022]”.(SZ, 21.05.22). Semelhante àquela contagem que o Padre Júlio Lancelotti tenta fazer em São Paulo, com a ajuda de muitos voluntários para conhecer de perto a população sem-teto, o que termina contradizendo o resultado obtido por meio do trabalho oficial de mapeamento com pouca credibilidade feito pela prefeitura.

Aqui em Berlim se vê muita miséria pelas ruas. Nada comparado ao Terceiro Mundo, é claro, mas é incomparável àquele cenário dos velhos ditos “melhores” tempos que já tivemos por aqui, quando se via nessa situação apenas uma minoria se comparado ao número atual. Lembro de uma senhora austríaca que me dizia: — Aqui a gente só não tem favela porque é muito frio. O que ela me dizia em 1981 vem de encontro ao que mais tarde escutaria nas músicas do Titãs(3) em 1989: “Miséria é miséria em qualquer canto, Riquezas são diferentes” e do Pedro Luís(4) de 1998: "E quem te disse que miséria é só aqui?” 


  

                                               

                                 Sem-teto na estação de metrô 👆👇








                    Cenas de um sem-teto pelas ruas de Berlim




Antonio C R Tupinambá

Originalmente escrito em Berlim, 2022.



Link: https://www.instagram.com/reel/DBZWyZtxCEJ/?igsh=b2JiYnV0anF4bDF6


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1) As fotos são autorais.

2) "Etwa 40.000 Menschen leben allein in Berlin ohne Wohnung und erleben in den kalten Wintermonaten eine besonders harte Zeit". <https://www.ch.roominabox.com/pages/unterstuetzte-projekte>.

3)Miséria -- Paulo Miklos / Sergio Affonso / Arnaldo Filho.

4) Miséria no Japão -- Pedro Luís.


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

A ESCRITA FEMINISTA DE SAADAT HASAN MANTO -- ALM No.70, November 2024

 




Adelaide Literary Magazine - 9 years, 70 issues, and over 2800 published poems, short stories, and essays

A ESCRITA FEMINISTA DE SAADAT HASAN MANTO

ALM No.70, November 2024

ESSAYS

Prof. Dr. Antonio C. R. Tupinambá

10/19/20249 min read

Saadat Hasan Manto, um autor à frente de seu tempo, trouxe em suas histórias sobre a divisão da Índia a força da contestação política e social, sendo por isso muitas vezes considerado por seus contemporâneos um “inconsequente rebelde anarquista”. Posteriormente foi chamado de “feminista” por não se esquivar de usar uma linguagem que outros descreveriam como vulgar. Escritor e obra eram polêmicos por muitas razões, principalmente pelo tratamento incomum de temas controversos, às vezes incompreendidos, por sua intransigente defesa da liberdade das mulheres, impensável para um autor em sua época e região. Ele foi acusado de obscenidade e enfrentou vários processos judiciais no Paquistão e na Índia por sua escrita e posicionamentos. Saadat Hasan Manto (1912-1955) nasceu na Índia e se mudou para o Paquistão logo após a criação do novo Estado-nação. Com uma vasta obra literária, especialmente como um dos maiores contistas da região em que viveu, foi considerado demasiado controverso para sua época, sendo levado a tribunal por um total de seis vezes nos dois países em que viveu, Índia e Paquistão. Apesar de perseguido e de ter um grupo de opositores a seu redor, Manto escreveu com a intenção de discutir questões sociais e desafiar o que ele percebia como fatores desfavoráveis à prática de um humanismo radical e contra a própria humanidade. A Partição da Índia após sua independência da Grã-Bretanha resultou na criação, em agosto de 1947, de dois Estados soberanos: Índia e Paquistão.

Este foi um período de frenesi e paixão comunitária, quando as pessoas esqueceram o humanismo, excluíram as mulheres e criaram um sistema, no qual elas eram vistas fora de qualquer grupo religioso, o que as tornava quase sub-humanas.

Saadat Hasan Manto era feminista. Tão feminista quanto um homem indiano da década de 1940 poderia ser. Ele usou suas histórias para erguer um espelho diante da hipocrisia da sociedade. Escreveu sobre prostitutas, cafetões ou criminosos porque queria impressionar seus leitores, reafirmando a humanidade dessas pessoas consideradas inferiores e de “má reputação”. Para Manto, pessoas muito mais humanas do que aquelas que ocultavam suas falhas sob um véu espesso de hipocrisia. As profissionais do sexo de Manto eram mulheres humildes, que se vendiam por qualquer quantia. Havia diferentes “exemplares” para os diferentes grupos sociais; aos que eram abastados, as que preenchiam a lacuna erótica da mulher casada e apenas reprodutora; para aqueles mais reservados, as que se colocavam em um lugar de subalternidade. Poucos denunciavam o fenômeno comum da cooptação das mulheres para a manutenção do patriarcado como o fez Manto. Tomemos por exemplo o conto “A prole” (Offspring/Aulaad), uma história angustiante sobre a dona de casa Zubeida, na qual Manto explora a violência psicossocial a ela infligida. No conto, um pacto social anti-feminino, com a participação e anuência das próprias vítimas, as mulheres. A personagem principal, é submetida a uma autopunição e cumplicidade com seus agressores.

Zubeida é uma mulher casada, sem filhos e infértil. Embora seu marido seja um homem dedicado e generoso, o questionamento de sua mãe e a pressão social imaginada alimentam a crença de que não conseguiu cumprir seu papel como mulher e isso lança uma sombra sobre a vida de Zubeida. A história também revela como as mulheres são cooptadas como os piores agentes do patriarcado — um caso de vítimas que se tornam perpetradores. Na época de Manto, as instituições religiosas, sociais e políticas, os costumes e a lei, o discurso oficial e popular convergiram para propagar um sistema de crença de que os chamados homens íntegros, decentes e respeitáveis ​​devem considerar as esposas estritamente como reprodutoras. Para obter prazer sexual e erótico, foram encorajados a procurar mulheres em outro lugar, longe de casa. Nas famílias indianas mais ricas, era obrigatório os jovens visitarem cortesãs para aprender “etiqueta”, um eufemismo para prazeres eróticos.[1]

Manto sofreu as consequências por ter sido dono de um texto voraz e destemido, que deixou uma marca indelével da beleza, ousadia e coragem. No seu conto intitulado “Mozelle”, nome da personagem principal, traz uma garota judia com sede de liberdade e independência, atitudes incomuns para os padrões da sociedade indiana de seu tempo. A inspiração de Manto para o conto veio de suas experiências na metrópole indiana Bombaim, onde entrou em contato com pessoas de diversas culturas e religiões nos contextos pessoal e profissional. Como em várias de suas histórias, Mozelle, a protagonista é também uma de suas mulheres/personagens libertárias e com espírito de justiça.

Manto viveu em Bombaim e carregou essas memórias e experiências em seu coração, mesmo depois de migrar para o Paquistão após a Partição. As mulheres nas histórias de Manto são ousadas e justas, inspiradas em sua passagem pela cidade. “Mozelle” é uma história em que a heroína homônima é uma garota judia vívida, independente e ousada que vive em Bombaim. A história tem como pano de fundo a violência comunitária entre hindus, muçulmanos e sikhs. Um jovem sikh chamado Trilochan Singh se apaixona por Mozelle, mas ela recusa seus avanços por considerá-lo demasiado religioso e conservador. A personagem de Mozelle é bastante complexa de analisar, e permanece um mistério em toda a história.[2]

Maryam Mansoor escreve sobre mulheres “escandalosas” em Manto e sobre a construção de personagens femininas fortes, com autonomia e antipatriarcais. Para ela, Manto era um escritor que não se abstinha, por conta de tabus da sua época, de abordar a sexualidade das mulheres descrevendo partes íntimas de seu corpo, o oposto do que era habitual em escritores contemporâneos, que as tratavam como objetos assexuados e reprimidos. “Manto é conhecido por ter retratado as mulheres do mesmo modo como o fazia com os homens, sem criar distinções em moralidade ou fazer julgamentos sobre elas, apesar de seus papéis”.[3] As mulheres em Manto eram diversas, individualizadas e por ele defendidas contra a misoginia vigente em nome da honra comunitária e do nacionalismo. “A maioria das tentativas de Manto de humanizar suas personagens femininas e apresentá-las em diversos papéis, retratando suas ações — raiva, independência e empatia —, reflete seu interesse pelos detalhes e a sutileza de sua escrita. O trabalho inovador de Manto e seu interesse em tópicos tabus retratando o poder e a atitude das mulheres, classificam-no como um autor de literatura feminista, que deixou sua marca na Índia e no Paquistão”.[4]

Manto nunca assumiu uma posição moralista em suas histórias (…) Ao questionar a própria ideia de arcabouço moral estabelecido pela sociedade, reconheceu o arcabouço institucional responsável não apenas por expor as ideias de moralidade, mas também por utilizá-la como meio de perpetuar a misoginia, da qual até mesmo os personagens masculinos de suas histórias são vítimas. Suas personagens femininas permanecem assertivas, realizando seu desejo sexual e questionando o controle corporal a que foram submetidas. As mulheres nas histórias de Manto foram o resultado de uma imaginação onde afirmariam o seu ser, permaneceriam sem medo e reivindicariam espaços que são delas por direito – espaços aos quais pertencem. Ele reconhece a opressão sistêmica das mulheres através das instituições, razão pela qual vê tanto a dona de casa como a prostituta como vítimas da misoginia institucionalizada e as apresenta sem inserir um código moral de conduta. Ao mesmo tempo, ele também olha para o vazio emocional que as envolveu. Suas personagens femininas permanecem assertivas, exercendo sua sexualidade e questionando o controle corporal a que foram submetidas. Seus escritos retratam lindamente a poética da tristeza. Tristeza que tem conotações femininas. Tristeza que simplesmente não permanece em seus olhos, mas é canalizada através de sua raiva, e dentro dessa raiva há uma infinidade de perguntas que desafiam todos os grilhões que a cercam. Tristeza que é pessoal na vida dessas personagens femininas, mas extremamente política porque decorre do sistema patriarcal. Os personagens masculinos de Manto, por outro lado, são frequentemente vistos expondo seus lados vulneráveis, delicados e sensíveis no contexto de algo tão duro quanto a Partição, que os empurra constantemente a aderir à masculinidade tóxica. Manto também usou suas personagens femininas para sensibilizar seus leitores, tanto para a condição quanto para o condicionamento humano. Suas histórias não apenas revelaram uma maneira totalmente diferente de olhar para a condição feminina, mas também havia uma feminilidade inata em seus escritos, que exigia ternura para com a brutalidade e com o pathos da Partição além do cinismo e da indiferença associados a ideias de união e fé quando, na verdade, não havia nada além de derramamento de sangue.[5]

Nas histórias de Manto as mulheres foram descritas como vítimas e vitimizadas, muitas vezes denegridas como um mero território a ser conquistado. Como um homem libertário, demonstrou, em sua escrita, a opressão das mulheres numa sociedade patriarcal. As “mulheres de Manto” eram diversas nas suas adversidades; livres de um padrão social único; marginalizadas, sofriam e enfrentavam dificuldades reais para se manterem vivas mas também podiam ser fortes, complexas, ultrapassar seus próprios limites e libertar-se de tabus que lhes eram socialmente impostos.[6]

Apesar do reconhecimento e demanda editorial que tinham suas histórias, o que era evidenciado quando vários editores solicitavam que escrevesse para suas publicações, via muitas delas sendo rejeitadas. Na Índia de Manto, havia um pacto machista e patriarcal compartilhado por homens e mulheres em diferentes setores da sociedade com o aval das autoridades e das famílias a fim de preservar o status quo, sem se preocupar nem com a garantia de direitos de forma plural ou a efetivação do exercício da cidadania, nem com a promoção de igualdade de gêneros. Uma sociedade na qual a mulher era segregada, subvalorizada e submetida a um acordo para negar sua humanização e para aceitar passivamente um lugar de subalternidade. Mulheres respeitadas e obedientes, violência sexual, privilégio de classe social, hipocrisia religiosa e, na presença dos invasores britânicos em seu período colonial, políticas colonialistas/nacionalistas que visavam, fundamentalmente, controle e exploração. Nesse quadro social era previsível a oposição ferrenha que seria imposta ao texto feminino e feminista de Manto.

Após um período de estudo na Universidade Muçulmana de Aligarth, Manto se muda em 1936 para Bombaim, onde trabalhou como editor da revista de cinema Musawwir (Painter), época em que também escreveu roteiros para cinema. Tinha 22 anos quando chegou a Bombaim e já revelava, na escrita, indignação contra os maus tratos praticados contra mulheres marginalizadas, principalmente prostitutas. Inimaginável um homem naquela época e contexto se preocupar com direitos das mulheres, naturalmente tidas como a eles inferiores. Perguntava-se por que somente aos homens era dado o direito de ser livre. Hoje, uma atitude que pode soar óbvia mas naquele momento da história se configurava como revolucionária, e provocava o rechaço do sistema de poder. Mulheres deveriam se submeter a um homem/proprietário/mentor e serem punidas e até mesmo excluídas do convívio social e familiar caso não alinhadas às rígidas normas e a preceitos religiosos e sociais vigentes. Delas era esperada submissão a qualquer figura masculina e de autoridade, fosse irmão, pai, avô, vizinho, imã ou guru e principalmente ao marido. Um conflito cultural indo-britânico sobre o papel sexual feminino teve amplo espectro e perdurou por todo o período colonial com influências até os dias atuais no subcontinente. Colonialismo e nacionalismo indiano predominante estavam envolvidos em projetos patriarcais distintos, mas interrelacionados.

Uma escrita a favor da humanização da mulher nessa realidade e contexto social, sempre tão adversos era sua fortaleza. Isso o fez merecer o título de “autor de escritos feministas” ou por que não dizer: “um escritor feminista”. O conteúdo feminino do seu texto, tendo como referência o sofrimento e a violação das mulheres como sua grande preocupação, foi único na sua época. Manto retratou experiências de mulheres, não só mas especialmente, durante o período de convulsão política no subcontinente, apresentando o silêncio das mulheres marginalizadas como fonte para uma visão profunda das estruturas patriarcais da sociedade, além de expor os meios para questionar gênero e sexualidade juntamente com os dogmas da cultura racial, da etnia e da religião. A violência e a vitimização que as mulheres tiveram de suportar, quando da Partição/divisão do subcontinente, foram postas à prova em grande parte de sua obra.


[1] Rehman, N. Inroduction. (2022). In: Saadat Hasan Manto: The Collected Stories of Saadat Hasan Manto, p. 29.

[2] Mishra, R. Defying Gender Roles: Manto’s “Mozelle” in Our Times. Disponível em: < https://cafedissensus.com/ 2022/08/22/defying-gender-roles-mantos-mozelle-in-our-times/>. Acesso em: ago. 23.

[3] Mansoor, M. Saadat Hasan Manto And His ‘Scandalous’ Women. Disponível em: https://feminisminindia.com/2017/05/03/portrayal-women-manto-work/. Acesso em: jan. 2023.

[4] idem.

[5] Mishra, T. Manto And His Revolutionary Writing: Thanda Gosht Review. Disponível em: <sangue.>. Acesso em: jun. 2024.

[6] Compare: Kahn, n. Victimization of Women in the Writings of Saadat Hasan Manto. The Creative Launcher. Vol. III, Issue II (June- 2018). Disponível em: < https://www.redalyc.org/pdf/7038/703876868007.pdf>. Acesso em: jun. 2024.

Antonio C. R. Tupinambá: Professor Doctor for Organizational and Work Psychology at the Ceará Federal University – Brazil. PhD in Work Psychology from the University Giessen – Germany