Ouvem-se gritos de protesto ao redor do mundo clamando pela liberdade de Julian Assange. Se esses gritos não ecoarem pelas frias salas dos tribunais londrinos, o jornalista que expôs as grandes mentiras do governo norte-americano poderá descer ao inferno do país que brada contra os males alheios mas perpetra, à luz do dia, crimes contra a humanidade. Literalmente, como já dizia John Pilger em 2020: "um juiz britânico poderá despacha-lo, ao canto mais sombrio do inferno prisional norte-americano”.(1) A morte em vida do jornalista australiano será decretada caso essa decisão ocorra e a extradição se concretize. O WikiLeaks de Julian Assange, ainda segundo seu conterrâneo e repórter John Pilger, está longe de ser o primeiro meio de denúncias dos crimes que cometem as autodenominadas “democracias”, principalmente aquelas como a norte-americana, que se quer como paladina da justiça e da verdade, vetor do bem no mundo. O padrão de criminalidade desses senhores do universo permanece tão igualmente voraz quanto o foi em tempos remotos, quando ainda não existiam ferramentas digitais e a mentira era contada e propagada de outras formas. O grande feito da organização editorial fundada por Julian Assange foi oferecer as provas de que esses discursos prodemocracia eram falaciosos.(2) Assange publicou no WiliLeaks vários documentos que comprovavam crimes de guerra, violações de direitos humanos e espionagem cometidos em diversos países pelos Estados Unidos e aliados, apresentando provas do imperialismo americano com consequências severas para relações diplomáticas entre os EUA e alguns países do mundo: "No Brasil, foram evidenciados casos de espionagem da ex-presidenta Dilma Rousseff e seus ministros, além da espionagem da Petrobras, motivada pelo interesse estadunidense na tecnologia para exploração do pré-sal… No último 25 de fevereiro [2022], ativistas e militantes organizaram atos simbólicos em seis capitais brasileiras, integrando o Dia Internacional de Mobilizações para Liberdade de Assange, que contou com manifestações em outros seis países para a entrega de cartas direcionadas a embaixadas e consulados dos EUA e Inglaterra pedindo a soltura de Assange".(3) A marcha em defesa de Assange em 2020 que percorreu as ruas de Londres, saindo da Australia House à Praça do Parlamento, o centro da democracia britânica, trazia consigo uma determinada simbologia geopolítica e histórica: unia as duas nações (Austrália e Reino Unido) corresponsáveis pelo que ocorreu até se chegar à condenação e iminente extradição de Julian Assange. Não é com Assange a primeira vez que os dois governos se unem em seus desmandos e desrespeito aos direitos humanos. Em conluio com outros países ocidentais já foram responsáveis por outras mentiras que custaram vidas e soberania em outras regiões. Exemplos mais emblemáticos se encontram nas tentativas de desvio da narrativa histórica e construção de "verdades" sobre a guerra para a extorsão, apoio a saques e matanças nos quatro cantos do mundo: "Nós, australianos, temos servido o Grande Jogo por muito tempo. Tendo devastado nossos povos indígenas, por meio de invasões, guerras e atritos que até hoje não cessaram, derramamos sangue por nossos senhores imperiais na China, Rússia, Oriente Médio, Europa e Ásia. Nenhuma aventura imperial contra aqueles contra quem não temos nenhuma desavença deixou de ter nossa dedicação”.(4) Em tempos mais recentes, no Vietnã, Timor-Leste ou Iraque a mentira foi a ferramenta mor de sustentação das incursões imperialistas modernas. No Timor-Leste, a Austrália agiu com maestria por meio da espionagem ilegal, nas negociações que visavam tão somente apoderar-se do petróleo e gás do país indefeso. Austrália e Reino Unido se juntaram aos Estados Unidos para tornar “verdade” a narrativa de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, cooptando assim aliados ocidentais para reforçar uma invasão ao país. No Vietnã a Austrália mentia para tentar convencer seu povo de uma nobreza em seus atos bélicos, ao dizer que o envio de suas tropas à guerra dos americanos se fazia a convite do governo local. Os donos do poder constroem e divulgam seu simulacro de “verdade" para manipular e tentar controlar mentes e pessoas. O WikiLeaks revelou esse lado obscuro das falsas democracias. É por isso que Assange encontra-se hoje numa prisão londrina, enfrentando acusações políticas fabricadas nos Estados Unidos. Corroboramos com Pilger ao afirmar que Assange, ao criar e desenvolver o WikiLeaks, estabelece um jornalismo investigativo sem precedentes no mundo digital enquanto se aventurava nos centros do poder, tornando públicos crimes de guerra dos EUA, antes ocultos, o que resultou em uma implacável perseguição, desonesta e duradoura. "Por trás da ação organizada de Estados Unidos e Inglaterra para a perseguição, extradição e prisão de Assange, vemos por parte desses países a tentativa de esconder do mundo seus próprios crimes. Além de um claro desrespeito ao direito internacional, na tentativa de extraditar um homem de nacionalidade australiana do Reino Unido para os Estados Unidos, sem nenhuma justificativa plausível. Julian Assange teve a coragem de enfrentar o império e publicar relatos das atrocidades cometidas pelos EUA em diversos países, e por isso organizações de todo o mundo estão há anos lutando por justiça e exigem a sua liberdade e o direito à liberdade de imprensa”.(5) Como afirma o jornalista alemão Günter Wallraff, “o caso de Assange saiu direto de um livro de inteligência. Os processos contra ele por suposta má conduta há muito foram interrompidos…”,(6) no entanto a opinião pública continuou a ser manipulada para que sua prisão pudesse ser vista como necessária e justificada. "Então ele foi transformado em um leproso, um demônio egocêntrico, um monstro. Isso também afastou as pessoas que simpatizavam com o WikiLeaks”. De onde poderia vir uma pressão internacional sobre o governo americano para livrar Assange de sua “morte em vida”? Para sua própria família, que luta incansavelmente buscando evitar sua extradição e alcançar sua liberdade, essa pressão deveria vir especialmente de uma nação com força política internacional como a Alemanha; país com grande relevância estratégica e geopolítica na União Europeia e na OTAN. No entanto não se pode esperar muito dessa interferência alemã a favor da libertação ou pelo menos da não extradição de Assange, quando o porta-voz do governo, Steffen Hebestreit cria uma restrição diplomática ao dizer que se trata de uma decisão do sistema legal britânico e, portanto, o governo alemão não pode emitir opinião ou mudar a decisão. As esperanças que a família de Assange tem do governo alemão solicitar a Joe Biden a retirada das acusações contra si estão enfraquecidas, quando se constata uma relutância em se oficializar apoio público ou quando se observa a mudança de postura dos políticos ao longo do tempo. Tobias Schulze afirma que John Shipton, pai do australiano já vivenciou a mudança no apoio dos partidos políticos ao filho antes e depois de assumirem o poder: primeiro apoiam Assange, mas com o tempo, assim que passam a fazer parte do poder, a questão se torna algo “delicado" para eles. Na Alemanha, "antes de ingressar no governo federal, os Verdes eram muito mais expressivos em seu apoio a Assange do que são hoje".(7) O establishment e os interesses políticos imediatos mudam também as possibilidades de se agir com independência e determinação em casos como o de Assange. Some-se a isso o fato da Alemanha ter se tornado uma espécie de “colônia" moderna norte-americana, submissa e dependente. Sevim Dagdelen, presidente do Grupo de Esquerda na Comissão de Relações Exteriores e porta-voz da política internacional cobra uma ação mais direta do governo alemão no caso: "A ministra federal das Relações Exteriores Annalena Baerbock 'não pode mais e não deve se esconder atrás da referência à sua confiança no Estado de direito britânico'. A perseguição a Julian Assange é politicamente motivada e deve acabar. O governo de coalisão atual (Ampel-Regierung) deve 'oferecer asilo político ao dissidente do ocidente Julian Assange na Alemanha como um gesto concreto de solidariedade e assim deixar claro: jornalismo não é crime. Não são aqueles que revelam crimes de guerra que pertencem à prisão, mas aqueles que os cometem e são responsáveis por eles”.(8) Em nota conjunta a Federação Internacional de Jornalistas e as Federações Europeias de Jornalistas afirmam: "Enviar Julian Assange para os Estados Unidos é um 'verdadeiro golpe' para a liberdade de imprensa” O comunicado ainda destaca que "Assange está detido em uma prisão de segurança máxima nos arredores de Londres por mais de três anos, 'apesar dos riscos à sua saúde mental e física'”.(9) Terão as manifestações populares força para que a descida de Assange ao inferno que lhe espera nos Estados Unidos não se consuma, conseguindo sobrevida para uma nova etapa de luta pela liberdade? Após a chancela do judiciário britânico e a ministra do Interior do Reino Unido, Priti Patel, autorizar a extradição só resta à defesa do jornalista tentar apelar novamente, apesar da iminente extradição. Nos Estados Unidos lhe espera uma sentença de reclusão por 175 anos. Como afirma o Wikileaks: "Um dia sombrio para a liberdade de imprensa e para a democracia britânica”. Pela revogação dessa decisão e para que a luta pela libertação de Assange continue, deve se expressar nosso engajamento. Cidadãos do mundo uni-vos e não nos deixemos convencer por pretextos frágeis, estratégias de propaganda norte-americana em uma guerra planejada, disfarçada de justa. Não podemos permitir que mais esse golpe à liberdade de expressão ocorra impunemente.
Anexo:
Carta aberta da mãe de Julian Assange (10)
Por CHRISTINE ASSANGE*
Muitas pessoas ficaram traumatizadas ao ver uma superpotência vingativa que usa os seus recursos ilimitados para intimidar e destruir um indivíduo indefeso
Não suporto que tudo fique parado diante de tanta injustiça.
Cinquenta anos atrás, quando dei à luz pela primeira vez, uma jovem mãe, pensei que não poderia haver dor maior do que a dor do parto, mas logo a esqueci quando segurei meu lindíssimo bebê entre os braços. Eu o chamei de Julian.
Agora percebo que me enganei. Há uma dor maior.
A dor incessante de ser mãe de um jornalista premiado que ousou publicar a verdade sobre crimes governamentais de alto escalão e sobre corrupção.
A dor de ver meu filho, que procurou publicar verdades importantes, infamado em todo o mundo.
A dor de ver meu filho, que arriscou a vida para denunciar a injustiça, preso e privado do direito a um processo justo repetidas vezes.
A dor de ver um filho saudável ir se deteriorando lentamente porque lhe foram negados cuidados médicos e de saúde adequados em anos e anos de cárcere.
A angústia de ver meu filho submetido a cruéis torturas psicológica, na tentativa de quebrar o seu imenso espírito.
O pesadelo constante de que ele seja extraditado para os Estados Unidos e depois passar o resto de seus dias sepultado vivo em total isolamento.
O medo constante de que a CIA pudesse executar seus planos de matá-lo.
A onda de tristeza quando vi seu corpo frágil cair exausto por causa de um leve derrame na última audiência devido ao estresse crônico.
Muitas pessoas ficaram traumatizadas ao ver uma superpotência vingativa que usa os seus recursos ilimitados para intimidar e destruir um indivíduo indefeso.
Quero agradecer a todos os cidadãos honestos e solidários que protestam globalmente contra a brutal perseguição política que Julian padece.
Por favor, continuem a levantar a voz para os seus políticos até que isso seja tudo o que eles vão ouvir.
A sua vida está em suas mãos.
*Christine Assange é mãe do fundador de Wikileaks.
Tradução: Anselmo Pessoa Neto.
_________________________________
(1) Pilger, J. A última chance de salvar Julian Assange. Diaponível em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/a-ultima-chance-de-salvar-julian-assange/. Acesso em: jun. 2022.
(2) idem
(3) Artigo: Pela liberdade de imprensa e pela verdade dizemos: Assange Livre já! Disponível em: https://mst.org.br/2022/04/11/artigo-pela-liberdade-de-imprensa-e-pela-verdade-dizemos-assange-livre-ja/. Acesso em: jun. 2022.
(4) Pilger, J. A última chance de salvar Julian Assange. Diaponível em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/a-ultima-chance-de-salvar-julian-assange/. Acesso em: jun. 2022.
(5) Artigo: Pela liberdade de imprensa e pela verdade dizemos: Assange Livre já! Disponível em: https://mst.org.br/2022/04/11/artigo-pela-liberdade-de-imprensa-e-pela-verdade-dizemos-assange-livre-ja/. Acesso em: jun. 2022.
(6) Wallraff, G. „Ein Tod auf Raten“. Disponível em: https://taz.de/Guenter-Wallraff-ueber-Julian-Assange/!5844317/. Acesso em: jun. 2022.
(7) Schulze, T. Hoffen auf Deutschlands Hilfe. Disponível em: https://taz.de/Auslieferungsantrag-fuer-Assange/!5859476/. Acesso em: jun. 2022.
(8) Maier, M. Assange mit dem Rücken zur Wand - und die Bundesregierung stammelt wirres Zeug. Disponível em: https://www.berliner-zeitung.de/welt-nationen/assange-mit-dem-ruecken-zur-wand-und-die-bundesregierung-stammelt-wirres-zeug-li.237528. Acesso em: jun. 2022.
(9) Schmidt, T. Extradição de Assange é "terrível precedente", diz Federação Internacional de Jornalistas. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/17/extradicao-de-assange-e-terrivel-precedente-diz-federacao-internacional-de-jornalistas. Acesso em jun. 2022.
(10) Carta aberta da mãe de Julian Assange ao mundo: "Pesadelo constante". Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/12/30/carta-aberta-da-mae-de-julian-assange-ao-mundo-pesadelo-constante. Acesso em: jun. 2022.