POLIS

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O projeto nasce com foco no comportamento político nas sociedades contemporâneas e nos efeitos dos movimentos sociais e políticos atuais sobre as liberdades e processos emancipatórios, bem como seus impedimentos em escala local, nacional e global. Tem por objetivos o desenvolvimento de um campo interdisciplinar de reflexão e prática investigativa e divulgadora, reunindo debates em torno de questões como: preconceito, racismo, sexismo, xenofobia, movimentos sociais, violência coletiva social, relações de poder, movimentos emancipatórios de povos e nações, valores democráticos e autoritarismos, laicidade, análises de discursos e ideologias, de universos simbólicos e práticas institucionais. Nessa perspectiva, o Polis atua desde sua criação formal em 2013, como projeto de extensão e em 2015 como Blog para divulgação e atualização.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

GEÓRGIA: INSTABILIDADE NO PARAÍSO(1)

 

  Protestos na Geórgia contra a prisão do ex-presidente Mikhail Saakashvili

Quando Deus fez a distribuição dos países e todos os povos se reuniram para isso, os georgianos tinham acabado de celebrar um outro festival. Eles beberam e cantaram e assim esqueceram que tinham um encontro com Deus. Mas Deus ficou tão comovido com a felicidade e entusiasmo pela vida daquele povo que lhe deu a área que havia realmente reservado para si mesmo. E assim o povo georgiano veio para seu país, que chamou de Sakartvelo […](2)



O nome Sakartvelo (como os georgianos denominam seu país) surgiu no início da Idade Média e deriva do "mítico pai fundador Kartlos, um descendente do filho de Noé, Jafé. E 'Geórgia', o nome que se popularizou no mundo todo, remonta ao persa e originalmente significa: 'A terra dos lobos'. Os Cruzados transformaram a Geórgia na terra de São Jorge. Eles pensavam erroneamente que este santo, muito venerado na região, cristianizou o país. Viajantes europeus do século 17 suspeitavam, de forma igualmente equivocada, que o nome derivava do grego Georgos, o agricultor de terras aráveis".(3) Uma terra que teve apenas uma curta experiência de independência em sua história do século XX, quando em 1918 fez sua primeira declaração como República Democrática da Geórgia, teve seu fim com a invasão ilegal do Exército Vermelho em 1921. Invadida e ocupada pelas tropas do ditador Stalin a então recém-nascida República Democrática da Geórgia passou a integrar a União Soviética em 1922 juntamente com a Armênia e o Azerbaijão; desejo e vocação independentista do povo georgiano foram então atropelados pelos tanques de guerra soviéticos. Tratou-se, portanto, de uma anexação que se seguiu a uma ocupação militar. Houve um levante em 1924, quando já não se podia falar muito de uma verdadeira resistência, o que se agravou com o crescente terror stalinista.(4) O país que pertence, juntamente com Armênia e Azerbaijão ao bloco caucasiano de ex-repúblicas da URSS deixou também, em 2008, de fazer parte da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que surgia em 1991 como sucessora direta da União Soviética, contudo sem ter atribuições de Estado. Com os anseios separatistas de duas de suas regiões (Ossétia do Sul e Abkhazia), testemunhou-se, neste mesmo ano (2008), a escalada de um conflito inicialmente nacional na Georgia, ameaçada em sua frágil soberania. Provando-se ainda uma força de intervenção regional, a Rússia interveio no imbroglio político reconhecendo a independência dos dois novos países que emergiam, a contragosto, no espaço territorial da Geórgia. A entrada das tropas georgianas em Tskhinvali - capital da Ossétia do Sul deveria significar o domínio sobre a província separatista; conflito este que se espalhou para a província da Abkhazia, que igualmente lutava por sua independência. "Estes dois conflitos também remontam aos tempos soviéticos. A lógica era simples: se a Geórgia se separasse da URSS, Abkhazia e Ossétia do Sul reivindicariam sua independência. Os primeiros confrontos começaram ainda na época do regime soviético. Após o fim do regime comunista, a tensão reprimida se tornou uma guerra declarada. A Rússia apoiou os separatistas com armas, dinheiro, apoio logístico e soldados, e exerceu um papel decisivo na derrota das forças georgianas”.(5) O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), há duas décadas ainda não significou a conquista de autonomia e paz nos países que daí emergiram. Um Acordo de Associação com a União Europeia (UE) assinado em 2014 reafirmou a aproximação da Geórgia com o bloco mas não significou avanços significativos para a estabilidade e democracia no país. A Georgia, paralelamente aos conflitos separatistas que acompanham a sua história recente de nação soberana continua revivendo velhos conflitos internos regados a grande incerteza política que deixa a população sem esperança de um futuro melhor. Já em 22 de novembro de 2003, manifestantes ocupavam pacificamente o parlamento georgiano forçando o então presidente Eduard Shevardnadze a renunciar no dia seguinte, no âmbito do que se denominou a Revolução Rosa. Revolução Rosa ou Revolução das Rosas, movimento pacífico e popular que retirou do poder o presidente do país. Tratou-se de um movimento popular espontâneo e legítimo ou de um golpe com a interferência do ocidente? "A então maciça suspeita de falsificação nas eleições parlamentares foi, em última análise, o gatilho para a chamada 'Revolução Rosa'.  […] Como não houve violência, a oposição falou de uma 'revolução de veludo' ou, segundo o símbolo dos grupos de oposição, a 'revolução das rosas". As forças de oposição venceram as eleições recém-anunciadas no início de 2004 com uma grande vantagem. Foi um momento histórico para o pequeno país do Cáucaso: o presidente Eduard Shevardnadze renunciou e deixou o poder para os três jovens políticos, Mikhail Saakashvili, Nino Burjanadze e Zurab Schwania. A mudança de poder em novembro de 2003, conhecida como “Revolução das Rosas”, foi uma mistura de espontaneidade e preparação cuidadosa. A mídia ocidental comentou com muita benevolência essa mudança. Mas também existem outras vozes. O Wall Street Journal relatou em 24 de novembro de 2003: “Por trás dos três políticos [Saakashvili, Burjanadze e Schwania] estão inúmeras organizações não governamentais [...] que surgiram desde a queda da União Soviética. Muitas dessas ONGs são apoiadas por fundações da América e de outros países ocidentais que estão produzindo uma classe de jovens intelectuais de língua inglesa que anseiam por reformas pró-Ocidente […](6) Essa jovem elite que a Revolução Rosa levou ao poder na forma do “Movimento Nacional Unido”, sob a liderança do presidente Mikhail Saakashvili, realizou extensas reformas e se declarou pioneira das reformas econômicas liberais na região. "Nos três anos seguintes, as reformas no Estado e na economia logo deram ao país a reputação de modelo de estudo do Cáucaso do Sul e taxas de crescimento econômico de dois dígitos. A dura repressão ao suborno na polícia e na administração, a liberalização da economia e a introdução de impostos fixos baixos logo produziram sucessos visíveis na forma de alto crescimento do investimento estrangeiro […] Oito anos após a Revolução Rosa, a euforia do despertar democrático há muito se perdeu e a decepção está se espalhando entre a população. Os críticos reclamam que as reformas na arena política se mostraram muito menos convincentes e que o governo queria fortalecer o pluralismo político e as reformas do Estado de direito seguiram-se com muito menos entusiasmo. Além disso, apenas alguns setores econômicos selecionados e participantes do mercado se beneficiaram com a liberalização econômica do país".(7) O ex-presidente Mikhail Saakashvili encontra-se, mais uma vez, no centro das atenções e é a razão de protestos de milhares que saem às ruas e exigem sua libertação, acusando o governo de mante-lo em prisão política. "Com gritos como 'Liberdade para Misha!', Milhares de pessoas pediram a libertação do ex-presidente Mikhail Saakashvili em um comício no centro da capital da Geórgia, Tbilisi […] O maior partido da oposição, o Movimento Nacional Unido (ENM), fundado por Saakashvili em 2001, convocou os protestos".(8) O presidente que ficou no poder entre 2004 e 2013 e buscou seguir um curso pró-Ocidente foi condenado a seis anos de prisão, à revelia, por abuso de poder, o que ele nega e diz ser uma acusação com motivação política.(9) Saakashvili teve seu apogeu em 2003, ao chegar ao poder como parte da Revolução Rosa. Hoje como voz de protesto na prisão diz que se a Georgia quer se tornar uma civilização, todos os georgianos precisam de reconciliação e de rejeitar atos da vingança. Quando um novo período eleitoral se avizinhava com eleições parlamentares planejadas para acontecer em 2012 não havia tanta certeza de uma pluralidade política e igualdade de condições no pleito. Segundo Yasmin Pumuk,(10) isso acontece apesar de se saber que, particularmente em tempos de crise, um país precisa de todas as cabeças pensantes de que disponha: "Portanto, é importante que a liderança de hoje entenda que a competição política é um elemento importante para a força inovadora do país, mas também do partido no poder. A liderança de um país cresce e se aprimora com a competição política e não com o monismo”.(11) Se há um interesse verdadeiro em seguir o caminho rumo à Europa, reformas institucionais e mudanças políticas para viabilizar uma cooperação com a União Europeia são essenciais. Do contrário, a Georgia continuará com as costas voltadas à Europa e presa a um passado de relações anacrônicas e perigosas com o gigante vizinho russo.

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(1) O título é uma referência atualizada ao artigo: BAETZ, B.; HUFEN, U. Das verunsicherte Paradies. Disponível em: <https://www.deutschlandfunk.de/eine-lange-nacht-ueber-georgien-das-verunsicherte-paradies.704.de.html?dram:article_id=427882>. Acesso em: 2018.

(2) BAETZ, B.; HUFEN, U. Mito fundador dos georgianos. Disponível em: Das verunsicherte Paradies. Disponível em: <https://www.deutschlandfunk.de/eine-lange-nacht-ueber-georgien-das-verunsicherte-paradies.704.de.html?dram:article_id=427882>. Acesso em: 2018.

(3) idem

(4) Compare: BAETZ, B.; HUFEN, U.  Disponível em: Das verunsicherte Paradies. Disponível em: <https://www.deutschlandfunk.de/eine-lange-nacht-ueber-georgien-das-verunsicherte-paradies.704.de.html?dram:article_id=427882>. Acesso em: 2018.

(5) LIRA, F. Percepções de ameaças e lealdades internacionais na Eurásia. Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/papers-36-encontro/gt-2/gt28-2/8167-percepcoes-de-ameacas-e-lealdades-internacionais-na-eurasia/file>. Consultado em: 2012.

(6)KÚCHHOLZ, J. Die Rosenrevolution in Georgien: Ausdruck der Demokratie oder ein von den USA erkaufter Putsch? (Arbeitspapiere des Osteuropa-Instituts der Freien Universität Berlin, Arbeitsschwerpunkt Politik, 49-3). Berlin: Freie Universität Berlin, Osteuropa-Institut Abt. Politik, 2005. Disponível em: <https://nbn-resolving.org/urn:nbn:de:0168-ssoar-439943>. Acesso em: 2011.

(7) PAMUK, Y. Wandel und Kontinuität. Acht Jahre nach der Rosenrevolution in Georgien. Friedrich Naumann Stiftung, p. 1-2. Disponível em:  <https://core.ac.uk/download/pdf/71736003.pdf>. Acesso em: 2011.

(8) OERTEL, B. Disponível em: <Freiheit für Saakaschwili!https://taz.de/Proteste-in-Georgien/!5808251/>. Acesso em: 2021.

(9) Compare: Freiheit für Saakaschwili gefordert. Disponível em: <https://www.tagesschau.de/ausland/europa/demonstrationen-georgien-101.html>. Acesso em 2021.

(10) PAMUK, Y. Wandel und Kontinuität. Acht Jahre nach der Rosenrevolution in Georgien. Friedrich Naumann Stiftung. Disponível em:  <https://core.ac.uk/download/pdf/71736003.pdf>. Acesso em: 2011.

(11) idem


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O racismo que nos assola a cada dia (1)



Rosa Parks fotografada pela polícia norte-americana



[…] Aqueles que professam favorecer a liberdade e, no entanto, depreciam a agitação, são homens que querem colheitas sem arar o solo, querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o terrível rugido de suas muitas águas. Essa luta pode ser moral, ou física, e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem uma demanda. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer pessoa se submete silenciosamente e você descobriu a medida exata de injustiça e injustiça que lhes será imposta, e elas continuarão até que sofram resistência com palavras ou lutas, ou com ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem oprimem… Se algum dia nos libertarmos das opressões e dos erros cometidos sobre nós, devemos pagar por essa libertação. Devemos fazer isso pelo trabalho, pelo sofrimento, pelo sacrifício e, se necessário, com nossas vidas e com a vida dos outros.

Douglas (1857). (2)



Ruby Bridges nasceu em 1954, ano em que o Tribunal Constitucional norte-americano determinou oficialmente o fim da discriminação escolar baseada na raça. A partir daí, negros e brancos deveriam ter acesso ao estudo nas mesmas escolas. A menina Ruby parece ter nascido nesse ano para se incumbir da hercúlea tarefa que se avizinhava: mostrar aos seus compatriotas que era possível negros e brancos viverem juntos, em pé de igualdade. No entanto, protegida por policiais, sua histórica escalada às escadarias da escola só para brancos, a William Frantz Elementary School, em 1960, para frequentá-la como primeira menina negra, não resultou, como se esperava, em passos firmes em direção ao fim do famigerado racismo que ainda hoje grassa na sociedade norte-americana.

Louisiana, nos anos 1960, experimentava o início do processo de “dessegregação”, ampliando os movimentos de luta por direitos civis dos negros estadunidenses. A recusa de Rosa Parks, em 1955, de ceder seu lugar, em um  ônibus,  para uma mulher branca resultou em sua prisão, mas seu gesto foi marcante para a sociedade norte-americana conservadora e segregacionista: "O Civil Rights Act fora sancionado, havia pouco tempo, pelo agora presidente Lyndon B. Johnson. Muita violência, morte, prisão e humilhação, haviam se passado, desde que, em 1955, uma negra, Rosa Parks, se recusara a ceder o seu assento em um ônibus a um branco, na cidade de Montgomery, no AlabamaAo subir no ônibus e pagar a passagem, sentou-se na primeira fileira de assentos reservados para negros. Como havia pessoas brancas em pé, o motorista resolveu mudar o sinal de "colored" ("pessoa de cor”) para atrás da fileira onde Parks estava e exigiu que os passageiros negros sentados se levantassem para que os brancos pudessem sentar-se. Rosa recusou-se a seguir a orientação exdrúxula do motorista e por isso foi acusada de violar a lei de segregação do código da cidade de Montgomery, apesar de não ter se sentado em um assento reservado para brancos.  Seu gesto de resistência foi a centelha de um movimento que culminaria com o reconhecimento de direitos civis dos afro-americanos. Em socorro a Parks, que fora presa por sua ousadia, apresentou-se um jovem e desconhecido pastor que atendia pelo nome de Martin Luther King. No ano de 1964, King seria laureado com o Prêmio Nobel da Paz”. (3)

É preciso ativar a memória para o conteúdo e o tom dos discursos históricos de um dos mais influentes líderes no combate ao racismo e pela garantia de direitos civis, Martin Luther King, que, reagiu à arbitrariedade contra Rosa Parks. Entretanto, antes mesmo do caso Rosa Parks, um ato do Poder Judiciário restringia o acesso e ocupação de qualquer propriedade a pessoas “não brancas”. A decisão da Suprema Corte foi resultado do caso Shelley v. Kraemer (1948) sobre a reivindicação desse direito: "O curioso nisso é que o caso que abriu o caminho para essa jurisprudência, em meados dos anos quarenta do século passado, envolveu a atriz Hattie McDaniel, que interpretou a escrava doméstica Mammy em “E o Vento Levou”. Seus vizinhos “caucasianos”, no luxuoso condomínio de Sugar Hills, em Los Angeles, não queriam tê-la e a outros atores negros de sucesso adquirindo imóveis nas redondezas”. (4)

"Eu não posso acreditar no que você diz, porque eu estou vendo o que você faz” é uma referência feita pelo escritor James Baldwin, que também fez parte de movimentos anti-racistas nos Estados Unidos dos anos 1960, à canção de 1964 "I Can't Believe What You Say (For Seeing What You Do)" de Ike Turner.(5) A frase consegue traduzir seu ceticismo sobre justiça dos brancos frente aos negros no cotidiano do seu país: “A segregação é não-oficial no Norte e oficial no Sul, uma diferença crucial que não faz nada, ainda assim, para aliviar muitos dos Negros do Norte”;(6) “A gente fica nessa posição impossível de ser incapaz de acreditar em uma palavra que os compatriotas dizem". De volta do seu exílio europeu ("Deixei a América porque duvidava de minha capacidade para sobreviver à violência do problema da cor”) lá estava Baldwin, participando ativamente do movimento dos direitos civis ao lado de nomes como Malcolm X e Martin Luther King Jr., tornando-se uma das vozes mais influentes do movimento. Era o auge da luta pelos Direitos Civis das pessoas negras, quando em 1964 "o presidente Lyndon B. Johnson, tinha assinado a 'Lei dos Direitos Civis', depois do assassínio de John F. Kennedy. A nova legislação proibia, pela primeira vez, a discriminação racial, religiosa e de género no acesso a emprego, a escolas, a espaços públicos ou ao direito ao voto".(7)

A memória histórica da resistência ativa sublinha a saga de Malcom X; seu discurso de radicalidade despertou a consciência afro-americana, pondo abaixo o conceito de supremacia branca, dominante em várias regiões naqueles anos de chumbo do racismo e do poderio branco. Malcom X foi responsável e inspirador para o surgimento de novos grupos e lideranças que lutavam, sem concessões, para que a causa dos direitos civis dos negros continuasse na agenda dos direitos civis ampliando sua recusa visceral do conceito e das práticas funestas da supremacia branca que dominava várias regiões entre os anos 1950 e 1960, inclusive com a volta de manifestações da Ku Klux Klan.(KKK). Foi após a promulgação da lei contra a segregação nas escolas públicas que permitiu Ruby subir as escadarias de uma delas, que surgiram novas ações violentas da organização criminosa pró-supremacia branca.

Em um dado momento da década de 1960, Rosa Parks disse a um jovem estudante branco de 22 anos, Bob Zellner, (que mais tarde também se tornaria um líder na luta por liberdade e igualdade racial) para se envolver efetivamente no movimento: "'Bob, você não pode estudar o problema racial para sempre', ele se lembra dela dizendo. 'Você tem que eventualmente tomar uma posição, e você tem que agir’”.(8) O pedido de Martin Luther King para que as pessoas voltassem às bases, trabalhassem localmente e alavancassem o movimento tocou esse jovem branco de família envolvida com a KKK, levando-o ao coração da luta por direitos civis dos negros.  O então jovem estudante a que nos referimos nasceu no estado do Alabama em 5 de abril de 1939; um estado conhecido por seu segregacionismo, racismo com marcante presença da KKK e cuja constituição, até os dias atuais ainda exige "escolas separadas para crianças brancas e negras”. "Algumas pessoas no Alabama dizem que, como a linguagem não tem força legal, isso realmente não importa. Mas as palavras têm significado - mesmo que sejam apenas simbólicas e não legalmente aplicáveis ​​- especialmente em uma época em que as escolas públicas são mais segregadas do que em qualquer momento desde os anos 1960 e as políticas de escolha de escolas favorecidas pelo presidente Trump e pela secretária de Educação, Betsy DeVos, têm por objetivo aumentar a segregação escolar”.(9) Palavras têm mesmo poder; foram exatamente as palavras proferidas por Martin Luther King e Rosa Parks que tanto impressionaram Bob e contribuíram para mudar sua vida: "É importante lembrar o que aconteceu há 50 anos, mas estamos ouvindo as palavras do Dr. King: 'Volte para o Mississippi, volte para Mobile, Ala., Volte para Danville, Va’”.(10)  "O discurso 'I Have A Dream' chamou a atenção do mundo. Mas o que realmente ressoou em Zellner foi a convocação de King para a ação. 'O que o Dr. King disse há 50 anos é que você tem de voltar para os estados e trabalhar', diz ele, 'e foi isso que fizemos’".(11)  Quase impensável que um nativo branco do sul do Alabama vivendo com parentes envolvidos diretamente com a Ku Klux Klan se aproxime e se engaje no ativismo negro. No entanto foi exatamente o interesse pelo movimento pelos direitos civis que o aproximou desse ativismo, enquanto ainda estava na faculdade. "Para sua tese final, ele tentou entrevistar os líderes dos direitos civis Rosa Parks, Martin Luther King e o líder sindical do Alabama E. D. Nixon […]”.(12) Enquanto estudante sua aproximação se deu quando escrevia, como parte de uma tarefa acadêmica, um artigo sobre as consequências do boicote aos ônibus de Montgomery, um movimento liderado por Rosa Parks com a ajuda de E. D. Nixon. O que significou para esse jovem branco, então com 22 anos, se engajar, de corpo e alma, na campanha pelos direitos civis?  "Para Zellner […] significava se rebelar contra os valores de sua comunidade. Embora o pai de Zellner tivesse deixado a KKK, a maioria da família ficou do lado dos segregacionistas e os rejeitou. Sua mãe, uma professora, e seu pai, um pastor, decidiram não deixar seu ganha-pão para se juntar ao movimento. No entanto, Zellner se juntou a ativistas afro-americanos em manifestações organizadas pelo SNCC [Student Nonviolent Coordinating Committee — Comitê Coordenador Não Violento dos Estudantes] e pelo Comitê Nacional de Coordenação dos Direitos Civis com a mensagem de King em mente. O Fundo Educacional da Conferência Sul ajudou a formar um projeto anti-racismo entre negros e brancos”.(13) As palavras de Rosa Parks que sensibilizaram Zellner continuam fortes e atuais: "algo terrível vai acontecer bem na sua frente e você terá que tomar uma decisão. Não escolher é uma escolha”. Bob escolheu não fugir à luta. 

Já o programa radical de Stokely Carmichael, ativista do Black Power(14) e porta-voz dos Panteras Negras (15) inspirou-se, sobretudo, no nacionalismo negro de Malcolm X: Carmichael representava uma militância afro-americana em meados da década de 1960 e recusava qualquer luta pela integração do negro à sociedade norte-americana (branca), dando prioridade ao cumprimento de agendas político-identitárias negras radicais cada vez mais transnacionais. Não compactuava com o reformismo de Martin Luther King a favor da inclusão dos negros nos marcos da cidadania norteamericana. “Carmichael e o Black Power voltaram-se, então, às reivindicações separatistas de Malcolm X por autodeterminação e poder político para os afroamericanos e suas comunidades por 'quaisquer meios necessários’”. (16)

O racismo nunca erradicado, desde então recrudescente no cotidiano dos EUA já não se deixa escamotear. As diferentes mídias registram barbaridades que se pensavam esgotadas, uma vez inadmissíveis na dita maior “democracia” do planeta. Os episódios extremos de racismo que se acumulam nos mais diversos setores da vida norte-americana são revelados a seco pelas mídias sociais e se espalham rapidamente pelo mundo causando perplexidade e revelando a face brutal e vergonhosa do Tio Sam, que se queria oculta para continuar agindo de forma truculenta. Nem mesmo a eleição de Barack Obama em novembro de 2008, o primeiro presidente negro de toda a história dos EUA, representou o fim de um longo e árduo processo de luta por emancipação dos afro-americanos; representou apenas um passo conjuntural em direção a uma sonhada igualdade racial que ainda não chegou.

Entretanto, a história que se quer avivar hoje não se passou nos já distantes anos de 1950 ou 1960. George Floyd, de 40 anos, morreu asfixiado por um policial branco pressionando o joelho sobre seu pescoço. As imagens da barbárie são do dia 25 de maio de 2020 e são aviltantes, causando indignação por todo lado do planeta. Apesar dos apelos de George, sentindo que sua vida se esvaía ao ser completamente sufocado; o policial branco, impávido, cumpriu sua sórdida tarefa de racista e homicida: matou George. Seria esse policial apenas mais um eleitor de Donald Trump que se considera investido da missão de tirar a vida de um semelhante? A súplica de George para não ser morto, I can’t breathe (“Não consigo respirar”, em português), teve o mesmo som daquela em 2014 de Eric Gardner em Nova York, outro homem negro assassinado por um policial branco que não sofreu qualquer punição pelo crime. Ações dessa natureza são parte de um sistema de justiça racializado que tem alvo certo. A violência policial é uma das principais causas de morte entre jovens nos Estados Unidos, onde, segundo estudos do Mapping Police Violence (17) (Mapeando a violência policial), os negros têm três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que os brancos. 

Nos Estados Unidos, George Floyd, homem negro de 40 anos; no Brasil, João Pedro, menino negro de 14 anos. George não foi acusado de qualquer crime, mas era negro. João Pedro brincava em casa, dentro de sua casa; mas era pobre, negro e morava em uma favela. No Complexo do Salgueiro no município fluminense de São Gonçalo, foi atingido no peito, dentro de casa, por um tiro de arma de fogo. A repercussão internacional do caso Floyd reforça também, no Brasil, a luta  por justiça para casos como o de João Pedro. Em Minneapolis, as ruas são ocupadas, prédios incendiados e milhares de cidadãos, não somente negros, reivindicam justiça, exigindo a prisão dos culpados pela tragédia que resultou na morte de George Floyd. A frase de George suplicando para que não o matassem I can’t breathe (Eu não consigo respirar) é repetida nos protestos de rua em diferentes cidades. Em função do crescimento dos protestos,  Derek Chauvin, o policial que sufocou sua vítima até a morte foi detido, mas seus três colegas que participaram com ele da ação desastrosa continuavam soltos. As manifestações atuais vêm mostrando outras cores. A multidão é composta por tons diferentes e, em muitos casos, formadas por maioria branca, o que quase não se via nos protestos da década de 1960. “É disso que se trata nessas manifestações de protesto pela morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA). Gente de toda cor de pele está farta de tolerar a leniência das autoridades [...] em relação a policiais que achincalham, torturam e matam pobres, imigrantes ilegais e negros”.(18) “[...] leis e decisões judiciais que vão de encontro a interesses dominantes em uma determinada sociedade só ‘pegam’ após muita luta, muita obstinação e coragem daquele que, por elas, podem ter suas situações de exploração ou opressão pelo menos mitigadas”.(19)


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(1)  Reescrito a partir de texto publicado originalmente no “Memórias de quarentena – Adufc”. Disponível em: <http://adufc.org.br/2020/06/10/memorias-de-quarentena-23-o-racismo-nosso-de-cada-dia/>. Acesso em: out.  2021.

(2) Traduzido do original em inglês de Frederick Douglass. EMANCIPAÇÃO NA ÍNDIA OCIDENTAL, discurso proferido em Nova York, em 3 de agosto de 1857. Disponível em: <https://rbscp.lib.rochester.edu/4398>. Acesso em: 10 mai. 2020. 

(3) STARLING, S. (2020). A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

(4) idem

(5) Baldwin, J. A Report from Occupied Territory. Disponível em: <https://www.thenation.com/article/archive/report-occupied-territory/>. Acesso em: 2019.

(6) idem

(7) James Baldwin. Ninguém sabe o meu nome. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/james-baldwin-ninguem-sabe-o-meu-nome/>. Acesso em: 2019.

(8) Solis, S. Bob Zellner took stand against his white community's values. Disponível em: <https://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/19/march-on-washington-bob-zellner/2646627/>. Acesso em: 2019.

(9) Strauss, V. FYI, Alabama’s constitution still calls for ‘separate schools for white and colored children’. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/answer-sheet/wp/2017/03/10/fyi-alabamas-constitution-still-calls-for-separate-schools-for-white-and-colored-children/>. Acesso em: 2020.

(10) Solis, S. Bob Zellner took stand against his white community's values. Disponível em: <https://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/19/march-on-washington-bob-zellner/2646627/>. Acesso em: 2019.

(11) idem

(12) ibidem

(13) ibidem

(14)  Expressão criada por Stockley black power (poder negro) após sua 27ª detenção, em 1966: “Estamos gritando liberdade há seis anos… O que vamos começar a dizer agora é poder negro”.

(15) Os Panteras Negras (Black Panther Party for Self-Defense) foi criado em 1966 pela comunidade negra para a sua proteção em face das arbitrariedades a que era submetida na sociedade racista e segregacionista norte-americana.

(16) GOULART, H. R. de P. Entre os Estados Unidos e o Atlântico Negro: o Black Power, de Stokely Carmichael (1966-1971). Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: 2019, p. 15.

(17) O banco de dados americano mais compreensivo sobre assassinatos por policiais. Disponível em: <https://mappingpoliceviolence.org>. Acesso em: 10 mai. 2020.

(18) STARLING, S. A nigger que me mostrou a neve. Os Divergentes, 2020. Disponível em: <https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/a-nigger-que-me-mostrou-a-neve/>. Acesso em: jun. 2020.

(19) idem