Tropas afegãs nas ruas das principais cidades do país (foto: HOSHANG HASHIMI / AFP).
Pode-se falar de boa intervenção ou de guerra justa? Guerra deve sempre ser evitada e, se inevitável, deve ser abreviada e o menos traumática possível. Intervenções são atos colonizadores e imperialistas que nunca trazem benefícios a curto, médio ou longo prazo para as populações e nações atingidas. Um dos maiores problemas dos Estados Unidos ao invadir países como o Afeganistão, além do próprio ato de agressão que pressupõe a invasão, é a indiferença e o desconhecimento que têm do povo e da cultura locais. Não foi diferente com o que causaram ao Vietnã e em consequência tiveram a grande e merecida derrota. Aliás, toda invasão é pretensiosa, arrogante, desumana e tem interesses essencialmente políticos e econômicos. Tampouco foi diferente com a invasão russa nos anos 1980 (A invasão russa ao Afeganistão em 1979 resultou em uma guerra que durou por dez anos — até 1989) no país que atualmente produz 90% das drogas de ópio do mundo e criou uma multidão de viciados. Essas nações poderosas invasoras desconhecem, portanto, os países que invadem e mentem ao afirmar que o objetivo da invasão é humanitário ou visando à recuperação ou promoção da democracia local. Trata-se de ações imperialistas, um imperialismo que se "torna um empreendimento reduzido à violência física, expansão ilimitada e subjugação sem limites”.(1)
O jogo na geopolítica mundial que envolve o Oriente deve sofrer drásticas mudanças com a retomada de poder pelos talibãs no Afeganistão. A entrada da China nesse jogo será mais rápida e certa do que se imagina. É claro que a ajuda ao novo regime no Afeganistão passará por várias dimensões e exigências de Pequim. Uma delas será assegurar a estratégica de continuar oprimindo o povo Uigure. A pequena fronteira chinêsa mais ocidental com o país tem do seu lado esse povo separatista, também muçulmano. A China não quer nem pensar que os Uigures venham a receber qualquer apoio ou estímulo talibã para sua legítima vocação separatista. Por outro lado, a agenda estadunidense mais atual de conter a ascensão do poderio da China parece estar ameaçada com o novo papel da superpotência asiática em face do vácuo deixado pelos rivais americanos. O combate ao terrorismo e o controle dos países produtores de petróleo que dominavam os interesses e ações dos Estados Unidos foram substituídos pelo objetivo de tirar da China o protagonismo mundial e o crescimento de sua influência no mundo em contrapartida à onipresença americana. Ademais, não se pode ignorar a zona de influência de Moscou que deve surgir paralelamente a essa entrada dos chineses diretamente no jogo dos talibãs. Ao contrario da China, que tem apenas alguns quilômetros de fronteira com o Afeganistão, a Rússia tem várias de suas ex-repúblicas dividindo largas fronteiras com o país. Há, portanto, que temer o terrorismo islâmico e a potencial influência talibã nessa região e nesses países fronteiriços. Isso seria um problema real para a Rússia que tem grande influencia sobre esses países, inclusive com presença e suporte militar. Um talibã fortalecido com influência nessas repúblicas é tudo o que a Rússia quer evitar.
As guerras e os desmandos que nasceram da intervenção britânica, seguida pela soviética e finalmente pela americana geraram o progressivo e atual caos do país e a presença determinante do exército religioso fundamentalista talibã. Não por menos é o Afeganistão conhecido como o "cemitério dos impérios”, pois ao longo do tempo, essa "sucessão de potências estrangeiras tentou e não conseguiu estabelecer influência e controle sobre o país e transformá-lo em um trunfo: o Reino Unido (Século XIX), a ex-URSS ( Século XX) e os EUA (século XXI). Todos tentaram domar e transformar o país em um ativo estratégico. Todos, sem exceção, sentiram um alto grau de decepção no final".(2) Saem os Estados Unidos, entram os chineses, voltam os russos e uma única certeza: uma grande insegurança e pavor sobre o futuro do país e de sua população. Principalmente aquela esperança, mesmo que limitada, de mudanças para uma vida minimamente segura e sem as ameaças fundamentalistas dos ditadores talibãs, o que poderia compensar as perdas pela presença dos invasores, foi posta em cheque e está cada vez mais remota com a derrota americana, com a retomada do controle talibã e com o abandono da população pelos governos do Ocidente.
Apesar de se dizerem vitoriosos e de serem os atuais senhores da nação por terem derrotado os americanos, há outros temas que não podem ser esquecidos ou negados. No vale de Panjshir, a noroeste do país, formou-se uma resistência anti-talibã liderada por Ahmad Massoud. Quase 9.000 combatentes, incluindo membros de milícias locais e pessoal oriundo das forças de defesa afegãs que foram dissolvidas se reunem sob a liderança de Ahmad Massoud e Amrullah Saleh em sua base no vale de Panjshir. Além de ainda haver focos pontuais como este de não reconhecimento da vitória taleban, o ex-vice-presidente Amrullah Saleh afirmou ser, por direito, o presidente interino do Afeganistão na ausência de Ashraf Ghani. Salhe cita a constituição do Afeganistão e diz que na ausência, fuga, renúncia ou morte do presidente, torna-se o presidente interino. Além de continuar no país, tem feito esforços para manter-se em contato com diferentes líderes locais para garantir o apoio necessário e o consenso para sua difícil mas desejada missão de substituir o presidente que já se encontra fora do país.
Assim como ocorreu com a presença indesejada da Grã-Bretanha e da União Soviética, os EUA não deixam um país melhor do que aquele que encontraram antes da invasão. A pergunta que todos fazem é: o que vai acontecer após a retirada das forças militares estadunidenses? A triste e assustadora resposta é que ninguém sabe, com clareza, o que virá. Uma grande incerteza tomou conta do país. Some-se a essa incógnita o temor da população que, por experiência anterior, receia o que pode resultar de um governo capitaneado por um grupo de fanáticos que já se provou brutal, violento e opressor. Resta saber se há espaço para alguma esperança de mudança e progresso em líderes que se guiam por leis religiosas fundamentalistas e sempre desconheceram civilidade e humanismo. O que significa, por exemplo, para o porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid a promessa de proteger os direitos das mulheres "dentro dos limites" da lei islâmica? Além de um discurso público, pouco tem sido feito para garantir esses direitos. A primeira e única prefeita do país, Zafira Ghafari relatou seu medo de ser perseguida e assassinada pelos extremistas que agora governam o país e afirmou estar à espera da sua chegada para possivelmente matar pessoas como ela. É, para mulheres como a prefeita e milhões de outras no país, desesperador, pois não há quem as possa ajudar e tampouco têm para onde ir para evitar uma iminente tragédia.
Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, 17 de agosto de 2021.
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1)"Gradualmente a opinião pública associou guerra, conquista, violência e subjugação à prosperidade e ao bem estar social. Firma-se na década de 1920 uma memória coletiva sobre um passado glorioso de conquistas heróicas. Essa memória induziria guerras e invasões dentro do próprio continente europeu, decisões políticas impulsivas e irracionais que causariam crises econômicas internas e luta de classes". (Abu-El-Haj, J. Os dilemas da democracia representativa na era digital: será que a nova direita é uma forma embrionária do totalitarismo?).
2)Vasconcelos, S. O futuro incerto do Afeganistão. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/colunistas/sueli-vasconcelos/2021/08/02/noticia-sueli-vasconcelos,1291974/o-futuro-incerto-do-afeganistao.shtml>. Acesso em: 17. Ag. 2021.