Foto: Milhares de pessoas se reuniram no Forte Vermelho na manhã de 16 de agosto de 1947 para assistir ao primeiro-ministro Jawaharlal Nehru içar a bandeira tricolor acima do Portão de Lahore do forte. A cerimônia foi realizada em 16 de agosto porque o novo gabinete tomou posse em 15 de agosto. (Biblioteca Memorial Nehru)
O desfecho se deu à meia-noite, entre 14 e 15 de agosto de 1947, quando os britânicos dividiram o subcontinente indiano em Índia e Paquistão. Na época, o Paquistão ficou formado pelo Paquistão Ocidental e Oriental em dois extremos do território indiano. Décadas depois, o que era o Paquistão Oriental se tornou Bangladesh. Há datas distintas para a celebração da independência nas duas nações emergentes da Partição; enquanto o Paquistão celebra o Dia da Independência em 14 de agosto, a Índia o faz no dia 15. Quando a independência da Índia foi conquistada a duras penas, pela atuação de líderes como o Mahatma Gandhi, um tal Sir Cyril Radcliffe, advogado britânico que nunca tinha estado mais adiante da região oeste da França, tomou para si a missão de definir como seria o desenho de um ou de outro país. Assim, Radcliff pegou sua caneta e traçou, a partir de seu gabinete localizado a 4.529 milhas de Delhi, como deveriam ser as fronteiras que dividiriam o subcontinente indiano segundo critérios de pertinência religiosa. Noroeste e Nordeste do subcontinente deveriam ser destinados ao novo Estado do Paquistão, pois eram de maioria muçulmana. A nova nação indiana secular iria se estender pelas terras centrais e meridionais. Os desenhos fronteiriços artificiais feitos de longe, em alguma sala de um prédio londrino, forçou a maior migração da história mundial, levando a cerca de 20 milhões de deslocamentos, criando uma violência comunitária sem precedentes, causando o desaparecimento de centena de milhares de pessoas antes, durante e depois da Partição.
Saadat Hasan Manto, escritor indo-paquistanês, foi também o maior cronista sobre o evento da Partição. Até os dias de hoje, seus livros são tomados como referência para se conhecer melhor o que aconteceu naquele período da história da Índia que antecedeu, durante o próprio evento e após a Partição, resultando na formação de um novo mapa da Índia e na criação do Estado do Paquistão.
Manto expôs as manchetes mais proeminentes no período em que viveu e testemunhou a Partição. Naquela altura os jornais só falavam de assassinos e assassinatos. Perguntava-se o porque de tantos homicídios, por que tanta brutalidade. Refletindo sobre aquele período da Partição, apenas pode constatar que os acontecimentos foram uma vergonha para toda a humanidade. Um retrato cruel da maldade: o desfile de pessoas nuas pelas ruas, mulheres indefesas sendo atacadas; o assassinato de milhares de seres humanos e o estupro de milhares de meninas. A esperança de que depois da Partição o problema da violência iria ficar para trás se esvaiu. A Partição, que seria para livrar o seu povo do ódio e da violência, não cumpriu a promessa. Logo se viu que nem ódio nem violência foram superados, pelo contrário, prosperaram. As ações em grupo durante os tumultos comunitários pareciam revelar que a violência também continuava crescendo dentro das pessoas. Cada dia as notícias deixavam isso mais evidente. Perguntava-se porque as pessoas se tornaram assim, tão violentas; por que se empenhavam tanto em praticar atos que causavam enormes danos aos próprios irmãos. Não poderia ter sido evitado? Parecia que ninguém tentava evitá-la e a tomava como algo natural. O horror que se vivia mostrava que as mãos dos cidadãos haviam se familiarizado com a adaga e a pistola durante os tumultos comunitários. Mas por que se essas pessoas nunca estiveram habituadas a matar? Teriam as circunstâncias desse evento da divisão os transformado? Apesar de todas as dificuldades com que antes se vivia em uma Índia unida, havia uma possibilidade de convívio; antes as pessoas se respeitavam, amavam suas mães, também seus amigos: compreendiam o valor da honra e do respeito por suas esposas e filhas. Eram pessoas que se diziam tementes a algum Deus. Por pensar assim, Manto continuou se perguntando: Como pode um evento ter destruído tudo isso? Um evento tão sangrento como nunca antes visto.
Depois do fato consumado, da Partição e da violência, ainda era possível se tentar analisar o que ocorreu para que posteriormente suas consequências fossem (re)conhecidas. Talvez uma análise psicológica das pessoas e dos acontecimentos pudessem levar a essa compreensão e planejar saídas. Os relatos históricos não seriam suficientes para isso; esse não é o papel da História. Manto queria vislumbrar uma possível solução e dizia: Se um lado confronta o outro, armas são sacadas, punhais são sacados e cravados, garrafas, pedras e tudo o que estiver ao alcance das mãos é atirado, o que os responsáveis pela segurança pública deveriam fazer para impedir isso? Como lidar com o grave problema que dificulta a prevenção de ataques, uma vez que os assassinos são pessoas temidas pelas testemunhas, e por isso, por temer pela própria vida, preferem se manter em silêncio a delata-los?
Manto não via em punições severas e definitivas como a pena de morte, ou somente a prisão dos envolvidos como soluções transformadoras. Para ele, a recuperação e a saída desse caos se daria com reeducação da “alma” pelo viés religioso/espiritual e por uma abordagem psicológica e científica. “Sou a favor daquilo que pode tornar essas pessoas ‘normais' novamente. A ‘alma’ é, sem dúvida, algo que existe e pode ser influenciada. Assim como nosso mundo da ciência, já que chegamos ao ponto de entender a estrutura atômica, certamente nos possibilita examinar a nós mesmos, nossa alma. Essas pessoas deveriam perceber que ainda podem ser salvas. Que são homens comuns e foram as circunstâncias que os tornaram monstruosos. Se eles entendessem isso sobre si, tenho certeza de que iriam evoluir. Um incidente trouxe essa falta de harmonia. Verdade. Mas agora temos de nos livrar das suas consequências. Onde está a nossa humanidade? Por onde andam seus guardiões?” Era talvez uma aplicação da psicanálise em âmbito social mais primeva do sábio escritor, que nunca escondeu sua admiração pelo trabalho de Sigmund Freud.
Infelizmente Manto não viveu o suficiente para testemunhar em que se transformaram Índia e Paquistão anos depois da Partição. Sequer pode ver o desfecho de uma nova divisão e a consequente criação de um terceiro Estado independente no mesmo subcontinente indiano, Bangladesh, o que mais uma vez resultou em milhares de mortes. Em 25 de março de 1971, o exército do Paquistão Ocidental invadiu o Paquistão Oriental, tentando impedir protestos independentistas, matando muitos civis, intelectuais, estudantes, políticos e membros das forças armadas bengalis. A guerra brutal que se seguiu durou nove meses. Estima-se que o número total de mortes civis e militares desse conflito passou dos 3 milhões. Outros milhões se refugiaram na vizinha Índia. Grupos de guerrilheiros bengalis (mukti bahini) e soldados – ajudados pelos militares indianos – lutaram contra o exército do Paquistão Ocidental, que terminou se rendendo em 16 de Dezembro de 1971, levando à criação do Estado do Bangladesh. A esse episódio faltou o olhar crítico de Manto, rápido em discernir o que se tornava uma nova patologia nacionalista e ritualística. Como em toda complexa teia de acontecimentos nos faltou sua força para em nós despertar o humanismo e a indignação.
Antonio C. R. Tupinambá
Fortaleza, 15 de agosto de 2024.
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